Segunda-feira, 13 de Setembro de 2010

Canção do Oceano

 

Sob os penhascos, perto dos troncos apodrecidos, na beirada entre areia e água, algo impossível acontece. Um homem aparece, de pé, sobre o mar. Seu rosto é impossivelmente puro. Seus olhos estão fechados. Não sei como, mas ele olha pra mim.
"Quero te deixar com medo," ele diz. Sua mão se fecha. Valas e fossos se abrem na areia. A praia sob mim, balança e então, repousa.
O cheiro do mar vai embora. As ondas se jogam contra a costa, mas seus sons não mais existem.
Quero correr. Mas não me atrevo. Quero dizer pra ele que sou só uma pessoa comum.
"Quero que você entenda que podemos lhe trazer dor a qualquer momento que desejarmos."
Minha língua se dissolve. Sangue inunda minha garganta.
"Se eu tiver tempo, vou matar você."
Então algo muda.
Um milagre corre através de mim como água corrente, e caio de joelhos. Por um momento, não posso sentir mais nada; compreender mais nada; pensar em mais nada. Só posso sentir as marés da mudança lavarem minha alma.
Não poderia ter entendido a maravilha disso antes deste momento. Ele faz com que as alegrias e tristezas de minha vida pareçam transparentes e vazias. Ele soa mais alto do que qualquer sino e queima mais forte do que o sol. É mais bonito que o mar, e bem mais exigente.
Minhas mãos correm pela areia e conchas. Minha mente pulsa para frente e para trás, em um momento contemplando o prodígio que se move dentro de mim, em outro momento, lutando para fugir. Temo que isto possa me engolir, me puxar como a corrente marinha, me revirar e me deixar preso dentro deste milagre pelo resto de minha vida.
Então ele se ergue e toca o que resta do meu eu antigo.
Meu corpo está doente, vomitando água salgada. Existem pedaços de algas marinhas saindo de mim. O homem vem em minha direção, e agora ele segura uma arma em sua mão. Não faço idéia do por que ele precisa dela. Acho que eu gostaria de viver, mas é difícil me focar nisso.
Por todo o mundo, pessoas falam. Carros buzinam. Coisas fazem barulho, lançam suas vibrações pelo ar. Não posso ouví-las, mas as conheço. Conheço cada uma conforme se elevam e morrem. Conheço os urros do oceano e as águas saltitantes de todo lago.
Meus braços estão muito fracos para me levantarem. Meus dedos do pé estão gelados. Tenho uma dor de cabeça.
Não preciso de meus braços, dedos ou minha cabeça. Só preciso olhar dentro de minha alma e descobrir que tenho inúmeros corpos. Posso cavalgar os trovões e dançar nas vibrações de uma fuga de Bach. Cada onda que corre por este mundo, é minha; e o milagre não para por aí. Eu sou elas!
Anseio por um momento. Eu me tornei - não tenho nome pra isso. Me tornei a essência, a composição, o espírito da onda. Não posso imaginar domínio maior; não desejaria comandar o Tempo, ou Amor, ou o próprio cosmos. Cada onda que percorre o mundo é minha.
A arma dispara.
Por um momento, vivo nas notas da flauta de um jovem homem, cada uma delas, uma vibração própria. Por trás destas notas, começo a ouvir uma música mais profunda.
Me espanto. Todos esses anos, o universo vem cantando seus segredos e verdades para mim, e eu simplesmente falhei eu ouvir. Não tento clamar esta música; ela transcende o que me tornei. Somente abro meu espírito e ouço.
Cinco vibrações, em harmonia e dissonância. Do céu chove a verdade do Firmamento. Ouço anjos cantarem sobre justiça, beleza e respeito. Suas canções não possuem resposta para uma bala, mas ela nem mesmo precisa de uma. "Você precisa ter a força para encontrar sua própria resposta para isto," ela diz, "pois se você não pode criar justiça, qual seria o seu valor?"
Das profundezas, ferve a canção do Inferno. Ouço os caídos pregarem seus refrões ríspidos de sofrimento, corrupção e poder. "Você está deitado indefeso na praia com um inimigo mortal," eles me dizem, "e somos a única resposta que você encontrará. Sirva ao sofrimento, e não temerás sofrer. Sirva a corrupção, e se deleite em sua degradação." Parece tolo para mim, uma tola tentação; mas então, uma voz exótica adiciona palavras ao coral. Por um momento eu vejo, áspera como a areia contra meu rosto a terrível virtude de suas causas.
Ouço o chamado da Natureza por liberdade e loucura. Inexorável e vasta, sua canção ecoa pelo mundo: nunca dê as costas para as verdades interiores. "Você não precisa de nada, só de si mesmo," ela diz. Os infinitos choques das ondas em meu coração concordam.
Duas vibrações se erguem dos humanos ao meu redor: uma clara e outra escura, uma pregando salvação da humanidade, a outra, seu suicídio. Eu as ignoro. Encontrei minha verdade.
A bala atinge minha cabeça.
Por um momento, sinto uma dor cegante. Então a onda se ergue e a engole. Me ergo.
"O que é você?" Pergunto para ele. Ele atira novamente; desta vez, me movo, saindo graciosamente para fora do caminho. "O que eu sou?"
"Vivo fora das coisas do mundo," ele responde. "Sou Omega: o término de sua existência. Da existência de tudo. Só preciso estender minha mão, e assim desejar."
Uma onda se ergue, pronta para arrebentar contra a praia. Ela se dissolve em um instante em água parada. Sinto sua morte de modo visceral, horrível, com uma reviravolta em meu estômago. A onda após essa também morre, e a próxima, como dominós caindo. O mar se revolta, inconfortável, se retorcendo contra os limites do alcance dele.
"Quero que saiba que isto é a medula de seus ossos. Quero que você compreenda que não pode nos opôr. Por esta razão, eu vim, e lhe trago dor."
Por um longo momento, acredito nele.
"Tenho uma língua novamente," eu digo, "e sua bala não me matou."
Seus olhos se abrem, negros como a noite. Uma estrela cai através deles. "Estranho," ele diz, "como humanos precisam somente de uma amostra de poder para tornar-sem arrogantes. Você caminha em um mundo de coisas maiores do que pode imaginar, e você ainda se atreve a desacatar."
Concordo com a cabeça.
Ele guarda sua arma. "Você tem muitas coisas que ama," ele diz. "Lembre-se, quando chegar a hora de nos enfrentar, que elas não são imortais."
Penso em todas as coisas que amo. Ela me chamam, embora de modo mais suave do que as ondas. Eu afundo aquele amor, o afogo em meu coração, e ele ainda volta à superfície: amigos, família, meu lar, minha arte.
"Farei o que for preciso," eu garanto a ele. Não sei exatamente o por que, só sei que ameaças não podem me deter.
Sua expressão se mostra claramente irritada, e ele parte.
Olho novamente para o oceano. Uma película se ergue de meus olhos, ou os cobre; não sei diferenciar. Vejo os grandes e poderosos espíritos das águas, e as verdades brilhantes no coração das gaivotas. Ouço os sussurros sem sentido dos infinitos grãos de areia, e vejo cada face exaltada das ondas conforme quebram contra à costa.
Ergo as mãos e capturo uma, uma jovem e brilhante onda formada segundos atrás pelos padrões do mar. A seguro em minhas mãos, e ela se acalma, esperando pelo meu desejo.
Eu falo, percebendo que enquanto o faço, que esta é a coisa mais maravilhosa possível de se imaginar:"Eu sei o seu nome."

 


publicado por undercover às 03:58
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